Podíamos ter seguido outro caminho

(Whale project, in Estátua de Sal, 26/03/2024, revisão da Estátua)


(Este artigo resulta de um comentário a um texto que publicámos, de Viriato Soromenho Marques, sobre a decadência da Europa e dos valores do Ocidente (ver aqui). Pela sua atualidade resolvi dar-lhe destaque.

Estátua de Sal, 27/03/2024)


Os “valores” ocidentais começaram, logo muito cedo, a ser impostos na expansão europeia dos séculos XVI e XVII. Eram os de civilizar as massas ignaras, muitas delas até canibais, que povoavam o resto do mundo.

Nós íamos levar a luz da civilização, do cristianismo e toda a conversa da treta semelhante. Na realidade, o que se queria era a exploração máxima dos recursos da terra; a população que lá vivia eram tidos como primitivos e brutos, sub-humanos, inferiores e não interessavam nada.

Pelo que, se África e Índia tiveram a sorte de ter climas corrosivos para a população branca – que impediram uma transferência em massa nesses primeiros tempos -, outro tanto não aconteceu na América, Austrália e Nova Zelândia. Aí, as populações residentes foram praticamente exterminadas por valorosos guerreiros cristãos, enquanto os nossos padres discutiam se eles tinham alma.

A população indiana sofreu vagas de fome terríveis, com a imprescindível colaboração de elites vendidas, enquanto os seus recursos agrícolas eram desviados para satisfazer as necessidades e os luxos dos colonizadores. A África sofreu a perda de 20 milhões dos seus filhos para o tráfico negreiro, com a colaboração de bandidos locais recrutados pelos traficantes.

Mas, foi o seu clima pouco ameno que os salvou da campanha de extermínio em massa, que caracterizou a atuação dos colonizadores na América, Austrália e Nova Zelândia. Claro que ninguém os livrou de serem pilhados dos seus recursos – através de capangas locais, e deserdados da sorte, que não se importavam de ir para a África arriscar-se às doenças que por lá havia, porque aqui não tinham nada. Mas, a não ser nas terras mais a Sul, com melhor clima, a transferência massiva de populações europeias nunca ocorreu. E foi isso que os livrou do destino cruel dos nativos americanos.

O problema é que, de algum modo, fomos sempre arranjando forma de achar que os russos eram de bandos de selvagens, não civilizados, a merecer as nossas campanhas civilizadoras – apesar de eles também serem brancos.

O que também lhes valeu foi que, em boa parte do território, o clima também não era bom mas, no Sul e na Crimeia, o caso piava mais fino. Os genoveses foram particularmente implacáveis a criar estações de comércio que compravam escravos aos tártaros da Crimeia e do Sul da Rússia que viviam da pilhagem. A escravidão por terras ocidentais, da Catalunha à Itália, foi o destino de milhares e milhares de desgraçados, enquanto outros iam bater com os ossos no Império Otomano.

Foi para evitar estas razias de pilhagem – de que os ocidentais muito beneficiaram, porque tanto se lhes dava escravizar um negro, que consideravam pagão, como um branco considerado meio selvagem e pagão -, que ditou que a Rússia começasse a achar boa ideia conquistar os territórios à sua volta. O tal pavoroso imperialismo russo.

O problema é que a mentalidade colonizadora, tal como as células terroristas adormecidas, não morreu nem morrerá. Como disse o escritor alemão Gunther Grass “isto nunca acaba, isto nunca acabará”. Podíamos ter seguido outro caminho. O caminho do negócio limpo, honesto, comprar e vender com lisura. Se não temos recursos temos pelo menos indústria, podíamos fazer isso.

A escritora de livros policiais com grande densidade psicológica, Agatha Christie, retratava o que significa, a nível individual, uma mentalidade destas no seu livro “Noite sem Fim”. Um sujeito, em vias de ser executado por assassinato, conta a sua história. Sempre fora adepto de conseguir o que era dos outros, custasse o que custasse. Matando, se necessário fosse. Aos 10 anos matara um colega, afogando-o num lago gelado, para lhe roubar um relógio que cobiçava. Acaba por casar com uma jovem norte-americana, decente e genuinamente apaixonada. Podia aí ter seguido outro caminho, refazer a vida com alguém que o amava, aproveitar os recursos que tinham. Mas optou por, mais uma vez, matar. Acabou, certamente, na ponta de uma corda.

Também nós podíamos ter seguido outro caminho, agora que a tecnologia que temos até nos permite. Temos técnicas de produção com as quais nem sequer podíamos sonhar no tempo das caravelas. A Rússia, até já se tinha deixado disso, de alternativas ao capitalismo.

Mas, tal como o protagonista de “Noite sem Fim” escolhemos outro caminho. Não arrisco prognósticos sobre o destino para onde esse caminho nos vai levar. Mas, tendo em conta o fim de todos quantos até hoje tentaram destruir a Rússia, é capaz de não ser lá muito bom.


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4 pensamentos sobre “Podíamos ter seguido outro caminho

  1. Entrevista longa e muito elucidativa sobre o conflito Ucrânia-Rússia, feito por um oficial do exército suíço que fez várias missões na OTAN. Nesta entrevista. Jacques Baud desenvolve ideias expostas no seu quarto livro publicado sobre este assunto. Infelizmente, em inglês. Fortemente recomendável.

    • Há uma versão em francês “L’Art de la Guerre Russe – Comment l’ Occident a conduit l’Ukraine à l’ échec” Edição Max Milo, Paris 2024 que vou começar a ler. No ano anterior, publicou na mesma editora outro livro com o título “Ukraine entre Guerre et Paix”.
      Além disso, o coronel Jacques Baud tem dado uma série de entrevistas num canal na Netflix onde analisa, com muita lucidez e algum humor, as peripécias dos ocidentais na guerra da Ucrânia. Recomenda-se vivamente.
      Ainda sobre a Guerra na Ucrânia, acabei de ler uma longa e pormenorizada análise de um prestigiado (e agora vilipendiado) antropólogo e professor françês, Emmanuel Todd, com o título “La Défaite de l’Occident”, que analisa, numa perspetiva histórica e antropológica, a evolução dos diversos atores na guerra, concluindo que o Ocidente perdeu os seus valores, as suas religiões e até os seus recursos intelectuais e se encontra atualmente numa fase de niilismo.

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